Hegemonia estadunidense em xeque: em meio ao interregno
- Cesar Moutinho
- 11 de fev.
- 7 min de leitura
Por: Jonathan Moutinho

Jonathan Moutinho estreia na coluna de Opinião dando um giro pelo mundo no âmbito da geopolítica
Um panorama histórico
Há muito se debate o longo processo de transmutação da hegemonia estadunidense, que desde a década de 70, traz consigo o carimbo da decadência perene, de onde saía de uma tendência explosiva do pós-guerra, em que imperavam os princípios fordistas e keynesianos - numa conjuntura onde o crescimento global era de 5%, com uma grande massa salarial, grande produtividade e elevada porcentagem de lucros, compreendendo assim a era de ouro do capitalismo - para um longo período de dificuldades, recessões e crises cada vez mais recorrentes.
Ainda após a Segunda Guerra Mundial, os EUA recebem o bastão da tutela do mundo, concedido pelo Reino Unido, e funda as estruturas organizacionais que iriam ampara-los institucionalmente por todo o decurso do século XX. O braço econômico seria expresso pelo FMI, Banco Mundial e - a princípio - o GATT, criados a partir das negociações de Bretton Woods, onde se estabeleceu o dólar como padrão monetário internacional. A parte da defesa e estratégia, ficou a critério da iniciativa do Tratado do Atlântico Norte - dando origem a OTAN, tendo como principais signatários os países centrais ocidentais, em sua maioria europeus, rivalizando com o Pacto de Varsóvia do Bloco Leste. E por fim, a ONU e suas organizações adjuntas, seriam responsáveis pela faceta política. Era formado assim, uma arcabouço sólido para a hegemonia norte-americana.
Contudo, no fim dos anos 60 e início dos anos 70, é dado início a uma tendência contrária - desta vez, implosiva - resultado direto da insustentabilidade e da subsequente estagnação das taxas de lucro (expressando a baixa remuneração do capital empregado), acompanhada da crise internacional do petróleo e do fim das políticas keynesianas, dando origem a era neoliberal de austeridade e baixa participação dos trabalhadores nos ganhos da produção - sendo o início da precarização contínua do trabalho sob o modelo toyotista, com a sua multifuncionalidade e flexibilidade, jornadas de trabalho porosas e baixo poder de barganha. Tal cenário seria decisivo para a manutenção dos EUA e a sua pax americanna em dimensão nacional.
No âmbito internacional, desafios constantes foram confrontados pelas sucessivas administrações. Em diferentes regiões do globo, pululavam desafios ao governo estadunidense, como as crises na região do Levante - envolvendo as nações árabes e o recém criado estado de Israel - nas Américas - com a revolução cubana e seus desdobramentos (1959) e a revolução sandinista (1979) por exemplo - e na Ásia - com os conflitos na Indochina, e a eminente Guerra do Vietnã.
Somam-se a estes eventos a Revolução Iraniana na década de 80, que marcou a perda de influência dos EUA sobre o Irã - com a queda da dinastia Pahlavi - a Guerra do Afeganistão - que acirrou a crise da URSS, com subvenção por parte dos EUA a grupos insurretos como os mujahidins - e a Guerra do Golfo - primeiro conflito armado de grande porte após a dissolução do mundo bipolar com o fim da URSS em 1991, ocorrido a fim de suprimir as tropas iraquianas e sua investida contra o Kuwait, que buscavam reivindicar o território e sair do contexto econômico de crise pós guerra Irã-Iraque.
Com o fim da bipolaridade entre EUA e URSS, houve uma expansão profunda da hegemonia norte-americana em direção ao Leste Europeu e às zonas de influência pertencentes a antiga URSS. Nesse processo, os EUA estabeleceriam como regra, o seu caráter belicoso, sem precisar contrapor um bloco que representava uma alternativa. Assim, mesmo as instituições destinadas ao desenvolvimento, concedendo empréstimos a países emergentes, com o crescente endividamento e vulnerabilidade dessas economias - todo brasileiro que viveu parte do século passado, sabe o quão amedrontador foi o endividamento externo da economia do Brasil, sendo de conhecimento amplo a atuação de instituições predatórias como o FMI, que determinava em grande medida as políticas macroeconômicas a serem tomadas, ferindo a soberania nacional dos países emergentes - no fim, converteram-se em seu contrário e só serviram bem para os países europeus em seu processo de restauração, (substituídos pelo Plano Marshall), e em contrapartida, assolam países em desenvolvimento, como a Argentina (com a progressão da dívida alcançando um novo recorde em 2024, no valor de 289 milhões de dólares).
Com o aumento progressivo do orçamento militar dos EUA, e a emergência da Guerra ao Terror após os acontecimentos do 11 de Setembro se apresentava um comportamento normativo que seria a regra dali em diante que sob a administração Bush, se consolidaria: o uso da guerra como ferramenta de manutenção da hegemonia. Com a face institucional em constante desgaste e enfraquecimento, a força, a figura ferina surge como mantenedora da ordem global. O que se nota a partir de então é uma constante decadência do consenso, com os EUA retomando aspectos isolacionistas pré-hegemonia, que tem como exemplo a não entrada dos EUA na Liga das Nações em 1919 (apesar do apoio presidencial de Woodrow Wilson, que foi figura importante para a criação da organização em seus "14 pontos").
Era Trump e o desgaste inequívoco
Hodiernamente, essa regressão, assume na figura do Presidente Donald Trump, o seu maior grau de desenvolvimento. Os EUA, sob a administração Trump, parece retornar à Doutrina Monroe, empreendendo o fim de uma sociedade aberta, ancorada em um universalismo, tendo como base os direitos humanos, a pluralidade e a multiculturalidade, bem como o respeito das diferenças engendradas por esses fatores.
Pode-se ainda questionar se algum dia, os EUA enquanto paradigma de sociedade, foram parâmetro para uma sociedade aberta, extrapolando e vulgarizando esta tendência, ao passo de ser tão "aberta", que possibilitou a existência de leis de segregação racial até 1964 (as leis Jim Crow), a fundação de um partido nazista em 1967, sob liderança de George Lincoln Rockwell, e até mesmo a ação da Ku Klux Klan que não ficaram no passado, mas permanecem vivas, tendo como manifestação recente a marcha ocorrida em Charlottesvile, na Virgínia, impulsionado pela onda trumpista que dominou o país, e novamente, grupos supremacistas brancos, distribuíram cartazes a favor da deportação em massa logo no dia da posse do presidente.
Mas importante ressaltar é o retorno a um estágio anterior a pax americanna, onde os EUA ainda galgavam seu lugar ao Sol como hegemona, em que a tendência monroísta, de "América para os americanos", a política do Big Sticky, bem como o mito fundacional do Destino Manifesto - que tinha no povo das 13 colônias a representação da intervenção divina, com os colonizadores a sendo figuras eleitas por Deus para tirar da barbárie o continente americano, resultando no genocídio da maioria das etnias indígenas - era a cartilha a ser seguida, recheada de ufanismo e nacionalismo, distante da aparência conhecida de todos nós, como um país aberto e baluarte da liberdade.
Sob a gestão Trump, todo esse rescaldo do passado se faz presente, transborda como parte integral e latente da sociedade norte-americana. Não só presente na oratória de Trump - e o slogan Make America Great Again -, mas com o mesmo tecendo promessas de deportação em massa, de construção do muro na região do Rio Grande, na fronteira com o México, e expondo seu negacionismo em temas como a mudança climática, mas também, expressa em ações políticas de boicote e instituições, organizações e autoridades internacionais que em grande medida foram fundadas pelos EUA.
Estes sintomas - tanto a nível discursivo como em ações - refletem essa mentalidade ancorada em um passado glorioso e de grandes conquistas que o povo americano empreendeu, cumprindo seu dever civilizacional. Mas aí reside a contradição: tal glória é acompanhada pela implosão da função dos EUA enquanto hegemona no sistema internacional. Assim se processa diariamente, com o presidente Trump retirando os EUA do Conselho de Direitos Humanos da ONU, suspendendo a assistência à URNWA (Agência das Nações Unidas de Assistência aos Refugiados da Palestina no Próximo Oriente); a Guerra Comercial contra a China, que compromete a ordem do livre-mercado; o boicote ao NAFTA, elevando tarifas contra os países signatários (México e Canadá); Sancionando o Tribunal Penal Internacional - pressionando a autoridade contra a decisão de emissão de mandados de prisão contra Benjamin Netanyahu (primeiro-ministro de Israel) e Yoav Gallant (ministro de defesa de Israel) - ferindo uma estrutura jurídica que criada com o apoio dos EUA, que assinaram o Estatuto de Roma; por fim, saindo do Acordo de Paris e dissolvendo o USAID.
Os dois últimos casos são ainda mais emblemáticos. Com a saída dos EUA do Acordo de Paris, se torna difícil a reversão da atual conjuntura, uma vez que os EUA é um ator importante para a resolução da atual crise climática, sendo um dos principais emissores de gases poluentes, enquanto se forma um cenário com fenômenos extremos cada vez mais recorrentes e violentos, tendo o ano de 2024 como o mais quente da história - com uma temperatura 1,55° C acima do nível pré-industrial - e um início de 2025 aterrorizante com a imagem distópica de Los Angeles em chamas.
O fim do USAID veio acompanhado das mais variadas teorias da conspiração, com influência do bilionário Elon Musk no processo. A Agência dos EUA para o Desenvolvimento Internacional teve sua dissolução acompanhada por diversas alegações de corrupção e acusada de abrigar esquerdistas que não correspondem ao interesse do povo norte-americano. A organização corresponde a maior parte de doações destinadas a ajuda humanitária, destinando menos de 1% do orçamento federal, mas ainda assim permanecendo a agência mais importante para este fim. Em contrapartida, a China se torna cada vez mais importante nessa seara, sendo hoje o principal doador para países da África subsaariana, e um dos principais doadores de agências da ONU - bancando 15,2% do orçamento regular -, espaço que é constantemente ameaçado a sofrer com o vácuo deixado pelos EUA, com Trump ameaçando cortar recursos destinados a estas agências. O que é hoje, cada vez mais ressaltado, é a postura belicosa até mesmo contra aliados históricos, membros da OTAN - como a Dinamarca e a ameaça dos EUA de anexação da Groenlândia -, a anexação do canal do Panamá e o domínio direto dos EUA de Gaza. O que sobra, no fim, é o poder das armas!
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